quinta-feira, 24 de julho de 2008

A EMERGÊNCIA E A CONSOLIDAÇÃO DA CIÊNCIA POLÍTICA

Sérgio Costa*

A ciência política como campo de estudo distinto da sociologia, com uma institucionalidade autônoma, paradigmas próprios e uma metodologia distintiva só surge efetivamente no Brasil nos finais dos anos 60 – momento em que a antropologia já havia se consolidado como área de conhecimento independente. Até então, a ciência política aparecia subsumida na orientação predominantemente macrossociológica das ciências sociais brasileiras. Além disso, a hegemonia teórica das correntes marxistas permitia um espaço reduzido para que a política emergisse como um campo de investigações autônomo [...]. Nesse sentido, talvez se pudesse relacionar, epistemologicamente, a ascensão de uma esfera de gravitação própria para a ciência política com as aludidas dúvidas que a existência de um regime militar modernizador trouxe para aquela macrossociologia dirigida para a transformação social.

A consolidação tardia da ciência política brasileira acompanha a tendência internacional, principalmente nos países europeus, onde a institucionalização de tal ramo do conhecimento só se completa nas décadas de 60 e 70. Mais localizadamente, a institucionalização das ciências políticas no Brasil se beneficia daquele conjunto de medidas de incentivo à pós-graduação desencadeado pelos governos militares, além dos incentivos das agências internacionais de fomento.

Os dois primeiros e até hoje os principais centros de pós-graduação em ciências políticas do país, o Departamento de Ciências Políticas da UFMG e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, ambos fortemente patrocinados pela Fundação Ford, surgem fora de São Paulo, e apresentam [...] uma predominância das escolas teóricas norte-americanas. Mesmo que os pesquisadores ligados ao momento fundacional das ciências políticas no Brasil não apresentassem um marco teórico-metodológico comum e único, mostram como característica peculiar o fato de serem críticos ao marxismo difundido no país àquela época e de enfatizarem fortemente a autonomia da esfera pública com relação aos demais campos da vida social. Buscam, também, [...] o rigor e aprimoramento metodológico, o apoio em técnicas quantitativas, além de apresentarem um texto direto e econômico contrastante com a narrativa quase romanesca da tradição sociológica precedente.

A consagração definitiva da recém-surgida ciência política dar-se-ia com os chamados estudos sobre a transição democrática. Trabalhando em colaboração com outros colegas latino-americanos, [...] os pesquisadores brasileiros – muitos deles radicados nos EUA – desenvolvem um amplo estudos das instituições políticas, procurando aferir o sentido e o teor precisos da ruptura autoritária, além de buscarem identificar os elementos fundamentais que caracterizam, mais tarde, o restabelecimento da democracia. Assentadas sobre o individualismo metodológico e na idéia de incerteza da teoria dos jogos, as teorias da transição definem a democracia como um sistema institucional de processamento de conflitos, caracterizado pela concorrência dos diferentes interesses sociais, sem que qualquer participante tenha segurança dos resultados finais a serem alcançados. Nesse escopo, a situação autoritária seria caracterizada pela suspensão do caráter contingente do jogo político, enquanto a democratização representa o processo através do qual a incerteza sobre os resultados novamente se estabelece e a força reguladora de um conjunto de regras se impõe sobre o poder de um grupo determinado.

É precisamente esse núcleo conceitual que direcionaria a minuciosa radiografia das instituições políticas perseguida pela ciência política brasileira. Se no momento da transição democrática coube precisar o momento institucional em que as regras de validade universal se impuseram sobre os interesses dos atores específicos e o caráter contingente e incerto dos resultados do jogo político novamente veio à tona, caberia agora seguir descrevendo a forma como operam as instituições políticas na “nova democracia” brasileira.

Trabalhando atualmente com uma pauta ampliada de temas, entre os quais se incluem, ao lado de seus objetos típicos [...] pode-se dizer que os pesquisadores consagrados na onda de estudos da transição e os marcos teórico-metodológicos utilizados no âmbito de tais estudos constituem ainda hoje o núcleo da ciência política brasileira. Uma preferência pelas abordagens da escolha racional, uma tendência mais recente à formalização e à modelização e a quase absoluta inexistência de um diálogo com a filosofia política são marcas características da ciência política que se produz hoje no Brasil. Só mesmo nas franjas do circuito acadêmico e numa posição claramente marginal e minoritária é que se desenvolve uma ciência política normativa receptiva às diferentes concepções de justiça em confronto no debate contemporâneo, como na controvérsia entre liberais e comunistaristas ou entre liberais e feministas.

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Sérgio Costa é doutor em Sociologia e professor na Universidade Livre de Berlim. O trecho acima citado foi extraído do livro “As Cores de Ercília: esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais”. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 104-106.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O LEVIATÃ QUASÍMODO

Breno Rodrigo de Messias Leite

Em De l’Esprit des Lois, Montesquieu constrói um modelo político-institucional que revolucionou o modo de se pensar e fazer as instituições políticas no Ocidente: inaugurou o princípio da divisão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Para Montesquieu, os poderes seriam interdependentes e teriam como principal finalidade o controle mútuo. E mais ainda, a divisão dos poderes seria a única forma de se evitar o absolutismo e a autocracia.

Inspirados diretamente em De l’Esprit des Lois, Madison e os Federalistas, os pais fundadores do modelo político-constitucional dos Estados Unidos da América, construíram os mecanismos de “freios e contrapeso” (checks and balances). Este tinha como princípio o estabelecimento de instrumentos capazes de manter e conjugar os padrões de interação entre os poderes Executivo e Legislativo; dotar o poder Judiciário de autonomia e força constitucional; e inviabilizar a ditadura da maioria legislativa, possibilitando assim a participação política das minorias, o revezamento da situação e da oposição.

De forma bastante clara, o modelo madisoniano “está apoiado na idéia de que uma ambição pode ser neutralizada por outra ambição. A partir dessa perspectiva, se idealizou uma estrutura institucional na qual o Executivo e o Legislativo deviam ser escolhidos de forma independente um do outro. O pressuposto era o de que, desse modo, seriam criadas duas instituições independentes entre si, capazes de se controlar mutuamente”. (Ver, Mariana Llanos & Ana María Mustapic, O Controle Parlamentar na Alemanha, na Argentina e no Brasil, 2005).

É claro que a realidade é dura e o modelo de democracia dos Estados Unidos não funciona necessariamente assim. O sistema partidário tornou-se dual e majoritário, seguindo invariavelmente a lei de Duverger; inviabilizou, de certa forma, a participação de minorias políticas relevantes; além disso, o poder do presidente tomou a dianteira no sentido de exercer um forte controle institucional sobre os demais poderes, fato que acabou sendo designado de presidencialismo imperial.

No caso latino-americano e brasileiro, em especial, a construção república inspirada nos modelos dos Estados Unidos e da França conservou, no plano prático, a essência da divisão assimétrica dos poderes. Para os construtores do Brasil republicano, a conjunção dos três poderes, entendidos de forma administrativamente autônoma, dentro de uma unidade político-institucional, só poderia ser colocado na prática a partir da construção de um Estado de Direito que fosse constitucionalmente forte e estruturado em valores republicanos.

Ocorre que, por outro lado, a auto-regulação e a divisão dos poderes sempre foram problemas inerentes às instituições políticas no Brasil. Dessa forma, a construção da república criou as condições objetivas para um funcionamento mais autônomo do poder Executivo e uma retração dos demais poderes, o Legislativo e o Judiciário.

A idéia de um Brasil moderno, onde a divisão dos poderes pudesse estruturar uma trajetória dependente de instituições políticas democráticas, deu lugar para a existência de um Brasil de instituições ineficientes. Também não podemos nos esquecer que o Brasil moderno é ao mesmo tempo uma construção inacabada – um retrato de modelos deformados e que ainda persistem.

A construção e divisão dos poderes seria potencialmente um instrumento de democratização das relações políticas, partindo do princípio de que as instituições importam no contexto da responsabilização e da participação da cidadania, bem como na construção de um Estado Democrático de Direito capaz de responder a demandas econômico-sociais através do processo decisório legítimo. Mas a dinâmica tem funcionado no sentido de sobre-determinar assimetricamente os poderes e radicalizar as suas contradições, inviabilizando, portanto, qualquer projeto republicano de democracia, de auto-regulação autônoma dos três poderes e de participação popular.

Os paradoxos do presidencialismo, por exemplo, podem não só comprometer seu próprio funcionamento – o que é uma evidência em si mesmo –, mas corroer todas as outras instituições políticas que se sentem acuadas pelo excesso de poder do presidente. Uma vez que no presidencialismo tem “um Executivo com consideráveis poderes constitucionais e geralmente com o controle completo da composição de seus ministros, e seu governo é eleito pelo povo por um mandato fixo, que não está em função de um voto de confiança dos representantes democraticamente eleitos no parlamento. Além disso, o presidente não é somente o proprietário do poder executivo, mas o Chefe de Estado que não pode ser demitido, exceto em casos de impeachment” (Ver, Juan Linz. Presidential or Parliamentary Democracy: does it make a difference?).

Dessa forma, superar os paradoxos do presidencialismo e construir uma transição institucional para uma forma de governo democrático capaz de responder as pressões sociais, respeitando a construção do sistema multipartidário, a plena divisão dos poderes e inviabilizando, portanto, a paralisia decisória pode ser uma alternativa de reformas eficazes e urgentes para a atual tragédia do nosso Leviatã Quasímodo.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O FUTURO DE CUBA

Caros leitores,

Em geral, as pessoas que analisam a política institucional - cientistas políticos e economistas, em especial - são conservadores, ou realistas como preferem alguns, em matéria de prognósticos. Quando não ficam sobre o muro, emitem opiniões bastante moderadas beaseadas apenas em conjunturas feitas nas redações dos grandes jornais e pelas agencias de notícias.

Para jogar um balde de água fria nesse pessoal, decidi fazer uma enquete sobre o futuro de Cuba. Certamente, o posicionamento dos leitores - cidadãos - deve ser levado em consideração.

Dê sua opinião

Até a próxima. Um forte abraço.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

MERCADO RENEGA A POLÍTICA, MAS MILITA

Maria Inês Nassif

Publicado originalmente no Valor, 27.12.2007

A política morreu. Viva a política. O ano de 2007, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo governo e do desgaste amargado pelos partidos políticos e pelo Legislativo, pode se orgulhar de ser aquele onde a política ousou desafiar o "consenso" contra o qual ela se debateu internacionalmente nas últimas duas décadas - o de que ela é ruim e deve negar a si própria para ter alguma virtude. Em nome da racionalidade, chegou-se a defender com enorme convicção (e esse "chegou-se" inclui muita gente) que as decisões de governo fossem cada vez mais descoladas da política e substituídas, sempre que possível, por automatismos técnicos a cargo de uma burocracia racional - esta sim, imunizada contra pressões e interesses de políticos eleitos por um povo ignorante e pouco informado, ele próprio mais interessado em suas necessidades imediatas do que no futuro do país.

Foi preciso uma grande crise política, a do mensalão, em 2005, para que o governo de um partido à esquerda do espectro político fugisse da timidez de contrariar o modelito da racionalidade imposto principalmente nos governos FHC. Não foi apenas timidez, aliás: no primeiro mandato, a opção de Lula foi mexer o menos possível num país que estava na corda bamba, frágil o suficiente para quebrar ao primeiro movimento especulativo. A promessa de "manter os contratos" feita pela Carta ao Povo Brasileiro, aprovada pelo PT antes das eleições de 2002, era um pacote que incluía manter a Lei de Responsabilidade Fiscal, a independência do Banco Central - senão de direito, ao menos de fato -, o câmbio flutuante (sem interferência sequer da autoridade monetária independente) e um vigoroso superávit fiscal. O primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, tomou a ferro e fogo e gostou da fórmula. Foi dando certo. E foi ficando.

A crise política lembrou ao governo e ao PT que nem a autonomia burocrática de parte da máquina governamental, destinada a manter pressupostos exigidos pelo mercado, é inocente. Ela é complementar à ideologia que nega a legitimidade das decisões de um governo eleito (e a negação foi orquestrada pelos próprios eleitos na última década). E, no limite, essa ideologia, é essencialmente antidemocrática.

No livro "Tudo à venda" (1996), o norte-americano Robert Kuttner, ao analisar a perturbadora adesão - inclusive de presidentes democratas dos EUA - ao pré-conceito de que quanto mais governo, pior, aglutina num único bloco de pensamento antidemocrático a teoria da Escolha Pública [Public Choice] e a da Escolha Racional [Rational Choice] (e trata ambas por Escolha Pública). Elas são uma transposição radical do liberalismo econômico para o mundo da política e são quase totalmente montadas em torno de silogismos que decorrem da crença incondicional de que o mercado tem o dom de corrigir suas próprias falhas - e por isso dificilmente falha. Ao historiar a construção dessas teorias, Kuttner acaba expondo o tamanho da armadilha política em que caíram os países e governos que assumiram acriticamente o neoliberalismo como verdade indiscutível, como "racionalidade".

A primeira premissa da Escolha Pública é a de que as mesmas razões que tornam o mercado virtuoso desqualificam a política. Se o homem maximiza o comportamento auto-interessado na economia, faz o mesmo na política. A escolha democrática é mais imperfeita do que o consumo: o mesmo cidadão que se informa e compra no mercado o melhor, tem informações imperfeitas para escolher os seus representantes - o eleitor médio é, em princípio, incapaz de separar o bom político do ruim. Nem eleitores, nem políticos, aliás, estariam interessados no bem comum, já que a lógica é que cada um defenda o seu próprio interesse. Se a concorrência, na economia, regula o mercado, é ela que corrompe a política.

Como os políticos são movidos por interesses próprios, o processo legislativo tem grandes possibilidades de não expressar o que de fato a maioria quer, assim como tem pouquíssimas chances de ter racionalidade, segundo a Escolha Pública. Assim, os tribunais não apenas têm legitimidade para desautorizar legisladores, como devem fazê-lo. Num regime democrático, convivem a conveniente liberdade do mercado e a inconveniente submissão do cidadão (e do mercado) a um governo das maiorias, que por esta ótica nada mais é do que a soma de interesses individuais inconfessáveis, difusos e pouco inteligentes.

A generalização feita acima pode parecer grosseira, mas ilustra o tanto que o país foi contaminado pelo preconceito com a política, que veio embutido no período de hegemonia absoluta do neoliberalismo econômico. Os dois governos de FHC nada mais foram do que a expressão máxima desse pensamento: a maioria governista foi amplamente utilizada para neutralizar o seu papel e o do governo na área econômica - o Legislativo era "menos pior" porque cumpria o papel de retirar a política da cena econômica. As chamadas reformas estruturais foram, na verdade, a desconstitucionalização do poder de regular do Estado. O primeiro mandato de Lula seguiu na mesma linha, embora sem maiorias. No último ano, a revelação foi a de que, independente do grau de adesão à máxima de que, quanto menos Estado, melhor, o mercado também tem as suas preferências políticas e partidárias. O mercado renega a política, mas milita na política durante todo o tempo.

O fim da lua-de-mel com os mercados e com as elites econômicas trouxe de volta a política à democracia brasileira - a política transparente, sem disfarces. Com todos os seus defeitos: os partidos são frágeis; as eleições são movidas a interesses privados, já que dependem de altos financiamentos que vêm de grupos com poder econômico; existem obstruções sérias de representação de setores sociais. Mas essa é a política que temos - e dela o país deve partir para construir uma sólida democracia, amadurecer seus partidos e desenvolver mecanismos que dêem eficiência à representação política.

A democracia, por mais imperfeita que seja, é mais sábia do que o mercado.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O CONCEITO DE DEMOCRACIA EM SCHUMPETER (I)

A democracia é o governo dos políticos (J. A. Schumpeter)

Breno Rodrigo de Messias Leite

A grande discussão em torno da Democracia recente está sustentada em dois princípios elementares. De um lado, encontra-se a noção de democracia formal, puramente descritiva e que não acrescenta nada a mais que instituições livres e a garantia de direitos prescritos. De outro, pode-se encontrar a formulação de democracia substantiva, onde a participação popular muitas vezes extrapola o conceito meramente representativo e chega a determinar o ordenamento da sociedade política. Para alguns, ainda, a primeira representaria da democracia “burguesa”, enquanto a segunda a democracia “socialista”.

Outra discussão, talvez mais profunda, e não se distanciando muito das questões apresentadas no parágrafo anterior, é a ruptura teórico-conceitual elaborada por Schumpeter. Ruptura esta que rearticula o conceito de democracia demarcando-a em torno das instituições políticas, desassociando, portanto, da interpretação sociológica popular iniciada por Aristóteles.

Por esta razão, é valido destacar, nesse breve artigo, o papel central da teoria competitiva da democracia (ou teoria minimalista da democracia, ou ainda teoria econômica da democracia) desenvolvida nas análises de Joseph Schumpeter, em Capitalismo, Socialismo e Democracia (Fundo de Cultura Econômica, 1961.), para a compreensão e entendimento dos processos de modernização política, social e econômica.

Schumpeter apresenta essencialmente duas teorias distintas sobre a questão da teoria democrática política. A teoria clássica presente nas obras de Aristóteles, Locke, Rousseau entre outros, que problematiza a questão da democracia no sentido de atribuir ao “povo”, ou conjunto de cidadãos, os fundamentos de legitimação dos pressupostos democráticos na sociedade e no Estado. Por outro lado, a democracia schumpeteriana aplicada às sociedades modernas tem como fundamento maior um aparato institucional de tomada de decisões políticas que se sobrepõe legitimamente ao próprio povo.

O leitor deve recordar que nossas principais dificuldades no estudo da teoria [política] clássica centralizavam-se na afirmação de que o povo tem uma opinião definida e racional a respeito de todas as questões e que manifesta essa opinião – numa democracia – pela escolha de representantes que se encarregam de sua execução. Por conseguinte, a seleção dos representantes é secundária ao principal objetivo do sistema democrático, que consiste em atribuir ao eleitorado o poder de decidir sobre os assuntos políticos. Suponhamos agora que invertemos os papéis desses dois elementos e tornamos a decisão de questões pelo eleitorado secundária à eleição de representantes, que tomarão, nesse caso, as decisões. Ou em outras palavras, diremos que agora que o papel do povo é formar um governo, ou corpo intermediário, que, por seu turno, formará o executivo nacional, ou governo. Nossa definição passa então a ter o seguinte fraseado: o método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (:327-8)

Dessa forma, na interpretação schumpeteriana, a democracia deve ser entendida a partir de alguns princípios:

Primeiramente, o poder Executivo deve ser limitado pelo Legislativo (tese do liberalismo clássico preservado no pensamento político de Schumpeter).

Em segundo, no procedimento democrático, a política é efetivada e realizada pelas lideranças (o papel das lideranças políticas é central no livre desenvolvimento e da competição democrática).

Em terceiro, as vontades coletivas não são negligenciadas, pelo contrário: é preciso criar vínculos que articulem tanto os interesses regionais ou privados, quanto os círculos de opinião pública, a fim de formar um ambiente favorável e propositivo para o fluxo de idéias e propostas, que Schumpeter chama de “situação política”.

Em quarto, a concorrência só realiza-se num ambiente plenamente democrático, pois a democracia permite que exista uma forte concorrência entre seus competidores (políticos), ou seja, “a concorrência livre pelo voto livre” dos eleitores e pelo controle institucional.

Em quinto, a democracia estabelece uma relação intima com as garantias das liberdades individuais e sociais fundamentais das sociedades de capitalismo avançado, à medida que as instituições fortalecem-se e legitimam o processo de emancipação jurídica e política.

Em sexto, o eleitorado tem o dever de formar o governo, mas também de dissolvê-lo mediante um ambiente adverso, de impopularidade ou corrupção – uma velha tese lockeana.

E em sétimo, a importância da representação proporcional que é garantida pela “vontade da maioria” em termos de representatividade (Schumpeter) e não pela “vontade do povo” (teoria clássica da democracia).

O centro do conceito de democracia em Schumpeter pode ser entendido nos seguintes termos:

A democracia é um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma decisão política (legislativa ou administrativa) e, por isso mesmo, incapaz de ser um fim em si mesmo, sem relação com as decisões que produzirá em determinadas condições históricas. E justamente este deve ser o ponto de partida para qualquer tentativa de definição” (:295-6).

Embora o pessimismo teórico de Schumpeter, para alguns, possa refletir algo negativista no tocante a política, desde já, podemos dizer que não entendemos assim. A democracia na sua interpretação minimalista permite ao analista político efetivar um approach teórico-empírico mais articulado, totalizado nas correlações de forças de cada situação concreta cheia de incertezas (observação feita por Adam Przeworski).

Afastando-se, nesse sentido, qualquer tendência utopista, fantástica e imprecisa do que se pode entender por democracia. O que está em jogo é apresentar uma outra visão da democracia: a democracia enquanto mecanismo institucional de tomada de decisão política. Tornando-a mais precisa, e fazendo com que os sujeitos que, de fato, participam da vida política manifestem seus desejos, propostas e interesses de maneira mais clara, nas instituições. A falsa consciência de “governo do povo e para o povo” – que Marx, aliás, já criticava no seu brilhante 18 Brumário de Louis Bonaparte –, torna-se apenas um jargão se levarmos em consideração o que a democracia é e sempre foi.

De qualquer modo, a partir das referências teóricas desenvolvidas por Schumpeter, a questão da democracia torna-se mais efetiva em termos de objetividade institucional. Em todo caso, a questão transforma-se em um obstáculo: de que forma pode-se aproxima a sociedade política da sociedade civil? O retorno às origens da modernidade e aos princípios republicanos? Aí é assunto para outra discussão...

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O PIM NA ENCRUZILHADA

Conversei com os dirigentes destas empresas [Samsung e LG]. Fui duro com eles e pedi audiência com os donos. Não é justo que eles sejam incentivados pelo Amazonas e, na primeira dificuldade, queiram pular fora do barco.
(Gov. Eduardo Braga)

Breno Rodrigo de Messias Leite

Ao contrário do nosso “justo” governador do Amazonas (AM), não vou defender o indefensável. Não pretendo exaltar um modelo de desenvolvimento capitalista-dependente que está fadado ao fracasso e as contradições do próprio capital.

É muito conveniente para alguns políticos, empresários e até setores do operariado sindicalizado fazerem devaneios metafísicos favoráveis ao “nosso” Pólo Industrial de Manaus, PIM, à medida que tal “modelo de desenvolvimento” é um forte “estimulador de investimento externo direto”; que promove “novos postos de trabalho para a região”; que patrocina a “industrialização”; ou como, em recente entrevista do dep. fed. Sabino C. Branco (PTB), “representa 90% da economia do Estado”, entre outras bobagens e mentiras...

Acontece que se observarmos bem, o PIM, além de não promover plenamente os princípios apontados acima, é apenas o reflexo das contradições gerais do capitalismo-dependente que cria e recria ilhotas de (sub)desenvolvimento dos centros econômicos, e que podem desaparecer da noite para o dia – o fenômeno do overnight – sem dar a mínima satisfação à população local.

Hoje, o Estado brasileiro em todas as suas instâncias de representação não dispõe de forças capazes de viabilizar o desenvolvimento regional. O Estado está falido, endividado e desestruturado. Não tem poder de barganha para dizer aos capitalistas do Japão, da Coréia, da Suécia etc., o que deve fazer com o seu capital. Se ele não puder investir no Brasil vai para outro canto do planeta: o que não falta neste mundo decadente é mão-de-obra barata e abundante. Aliás, como já disse o inimigo nº 1 do PIM, o tucano José Serra, o Brasil não é o centro do universo.

Por isso, pretendo apontar algumas razões para a miséria econômica e a inviabilidade política do PIM no Amazonas. Vamos os fatos:

1. o modelo PIM não propiciou uma distribuição de riqueza no Estado e na região. Pelo contrário, concentra e centraliza seu capital em Manaus e, assim, atrai a população do interior e de outros Estados. É uma combinação de esvaziamento do campo-periferia e acumulação de miséria na cidade-centro;

2. o modelo não criou um forte mercado consumidor interno, que possibilite a circulação da renda ao longo da atividade econômica;

3. o modelo não desenvolveu uma matriz de desenvolvimento científico-tecnológico. Não temos centros de excelência e as Universidades não estão preparadas para tal empreitada;

4. o modelo não condiciona melhorias substantivas à classe trabalhadora, em termos de elevação real dos salários e da renda, condizentes com a inflação e com a pujança das indústrias. Na realidade, o que existe é a precarização do trabalho, tanto na produção, quanto na relação sindical – reflexos da reestruturação produtiva;

5. modelo proporciona um crescente índice de desempregados e empregos instáveis. Segundo notícia da Folha de S. Paulo (2006) “fabricantes de celulares e de televisores demitiram centenas de trabalhadores nos últimos dias em Manaus”, e a razão para isso é simples: “mudança tecnológica” e “guerra fiscal”;

6. inalmente, o modelo não criou uma infra-estrutura capaz de estimular a urbanização. A cidade de Manaus, na verdade, embora esteja cercada pela maior bacia hidrográfica do mundo, sequer tem água em todas as torneiras. A urbanização típica de uma cidade industrial é inexistente.

Diante desse quadro adverso, precisamos de uma visão de futuro, menos pragmática e mais utópica: um projeto econômico, um progresso avançado de ciência e tecnologia, um modelo de desenvolvimento com inclusão e socialização da riqueza. Penso de deveríamos defender projetos, ao invés de “defende” com unhas e dentes um modelo factóide dependente do capital externo, que tem seus dias contados.

Não quero ser alarmista, mas pode-se redirecionar o projeto para algo mais racional e sustentável. Enquanto os “nossos” políticos ficam nessa autopromoção “em nome dos interesses da população”, saibam, desde já, que estão defendendo um capitalismo colonialista, dependente e periférico. A independência econômica deve estar irmanada à independência política e social. E nesse sentido, pensar a Amazônia é integrá-la num todo estruturado, onde as possibilidades de um novo modelo econômico criativo são viáveis. O desafio está lançado. Mas quem tem peito para colocá-lo na prática?

domingo, 6 de janeiro de 2008

VIOLÊNCIA, RACISMO E DEMOCRACIA

Leia na íntegra a palestra proferida pela filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, Marilena Chauí, participou no dia 3 de dezembro, em São Paulo, no ciclo de debates “Ações Afirmativas: Estratégias para Ampliar a Democracia”, promovido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, chefiada pela Ministra Matilde Ribeiro.

Violência, racismo e democracia

Contra a violência

1. Ética, violência e racismo

Numa perspectiva geral, podemos dizer que a ética procura definir, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que balizam o campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas idéias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o bem, o justo e o virtuoso. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a uma pressão externos. Enfim, a ação só é ética se realizar a natureza racional, livre e responsável do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma intersubjetividade. A ética não é um estoque de condutas e sim uma práxis que só existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos por formas de sociabilidade instituídos pela ação humana em condições históricas determinadas.

A ética se opõe à violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar);3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito;5) conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror.

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra.

É sob este aspecto (entre outros, evidentemente), que o racismo é definido como violência. Não é demais lembrar quando essa idéia aparece.

De fato, não se sabe muito bem qual é a origem da palavra “raça” - os antigos gregos falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação;e essas três palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa “haras” para se referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à palavra “raça”. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a partir do século XV, “razza”, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente, estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão “limpeza de sangue”, significando a conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico.

É interessante observar, porém, que a palavra “racial” surge apenas no século XIX, particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin, introduziu formalmente o termo “raça” para combater todas formas de miscigenação, estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra “racismo”, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior, de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas, como a separação ou o apartamento total - o apartheid - e a destruição física do genos, isto é, o genocídio. Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais, isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade.

Ora, o fato de que no Brasil não tenha havido uma legislação apartheid, nem formas de discriminação como as existentes nos Estados Unidos, e que tenha havido miscigenação em larga escala, faz supor que, entre nós, não há racismo. O fato de que tenha sido necessária a promulgação da Lei Afonso Arinos e que o racismo tenha sido incluído pela Constituição de 1988 entre os crimes hediondos, deve levar-nos a tratar a suposição da inexistência do racismo num contexto mais amplo, qual seja, no de um mito poderoso, o da não-violência brasileira. Trata-se da imagem de um povo ordeiro, pacífico, generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo e o preconceito de classe, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua posição econômico-social nem por suas escolhas sexuais, etc.

2. O mito da não-violência brasileira

Por que mito? Porque:
a) mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito nega e justifica a realidade negada por ele;b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente;c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples pensamento, mas formas de ação;d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não-violência essencial da sociedade brasileira.

Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se. Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass media, observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira sistemática:

- fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, favelados, encarcerados, sem-terra;- fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os seqüestros;- fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do contingente de desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e mercados, e para falar dos acidentes de trânsito;- fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos poderes públicos;- fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes da república, à lentidão do poder judiciário, à falta de modernidade política;- fala-se, por fim, em crise ética. Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência. Chacina, massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza;fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a violência. As imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la. Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por meio dos quais se dá a conservação da mitologia.

O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. "Eles" não fazem parte do "nós".

O segundo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma "epidemia" ou um "surto" localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.

O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinqüência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os "agentes violentos" (de modo geral, os pobres e, entre estes, os negros) e legitimar a ação da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de "chacina" ou "massacre" quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata da proteger o "nós" contra o "eles".

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural fragilidade feminina, proteção inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e sedução; paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e safados;a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida pelos degenerados, etc.

No caso desse mecanismo de inversão, foi sintomática a reação de uma parte da classe média diante do Prouni. De fato, muitos disseram, pasmem!, que se tratava de “opressão racial contra os brancos”, no momento da entrada na universidade, e de “estímulo ao ódio contra os negros”, durante a permanência universitária. Em suma, o Prouni seria a criação do racismo no Brasil!
Mais clara e ainda mais paradigmática do mecanismo da inversão é o que acaba de ocorrer com a Ministra Matilde Ribeiro pela entrevista concedida à BBC: para puni-la por todas as políticas de ações afirmativas e de criação democrática de direitos sociais, econômicos e culturais, para puni-la por sua luta contra a violência racial, os meios de comunicação de massa tentam transformá-la em agente da violência. Ora, ao isolar suas palavras do contexto, os defensores da “não-violência” praticam um ato de violência psíquica, intelectual e política, pois deformam e traem o que ela disse. Usando essa violência, declaram que não há racismo no Brasil, a não ser este que, segundo eles, ela teria instituído. E, suprema ironia, um dos jornais atacantes e pretensamente não racista costumava referir-se a FHC como “presidente mulatre”!

Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera, alimenta e repete o mito da não-violência.

3. Uma sociedade violenta

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é determinada pelo predomínio do espaço privado (ou os interesses econômicos) sobre o público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades, que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade;e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Há, assim, a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas (consideradas desigualdades raciais entre superiores e inferiores), religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência.

A violência está de tal modo interiorizada nos corações e mentes que alguém pode usar a frase "um negro de alma branca" e não ser considerado racista. Pode referir-se aos serviçais domésticos com a frase "uma empregada ótima: conhece seu lugar” e considerar-se isento de preconceito de classe. Pode dizer, como disse certa vez Paulo Maluf, “a professorinha não deve gritar por salário, mas achar um marido mais eficiente” e não ser considerado machista.
Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nossa violência social considerando a sociedade brasileira oligárquica, autoritária, vertical, hierárquica, polarizada entre a carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais.

Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de escravos)-cidadão, e concebe a cidadania com privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidirem. O caso da mídia contra a Ministra Matilde exprime exatamente essa idéia de cidadania concedida e retirada ao sabor dos interesses dos dominantes. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos, em lugar de aparecerem como conquistas dos movimentos sociais organizados, são sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante.

Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. Os indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores, ainda que alguém superior numa relação possa tornar-se inferior em outras, dependendo dos códigos de hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma da dependência, da tutela, da concessão e do favor. Isso significa que as pessoas não são vistas, de um lado, como sujeitos autônomos e iguais, e, de outro, como cidadãs e, portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o clientelismo, considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do "caráter nacional".

Nela, as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. Essa situação é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que "a justiça só existe para os ricos". O Poder Judiciário é claramente percebido como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio;para as camadas populares, repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas - situação violenta que é miticamente transformada num traço positivo, quando a transgressão é elogiada como “o jeitinho brasileiro”.
Em nossa sociedade, não existem nem a idéia nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado (isto é, dos interesses econômicos dos dominantes). A indistinção entre o público e o privado não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estrutura do campo social e do campo político que se encontra determinada por essa indistinção. É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media monopolizam a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância ou atraso.

As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e pelos assassinatos clandestinos. As desigualdades econômicas atingem a proporção do genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, safados, indolentes, raça inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até há pouco tempo na entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: "Um negro parado é suspeito;correndo, é culpado". Os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (isto é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal-adaptáveis ao mercado de trabalho capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, "civilizados" (isto é, entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias trabalhistas porque "irresponsáveis"). Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo "para averiguação", caso não esteja carregando identificação profissional (se for negro, além de carteira de trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam "sinais de trabalho" e a prendê-lo caso não encontre os supostos "sinais"). Há casos de mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas “forças da ordem". Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais, prostitutas e pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carregam os estigmas da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de violência, as classes ditas "desfavorecidas" sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas.

É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria criaram não só o fenômeno da migração, mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra, volantes, bóias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias trabalhistas. Bóias-frias porque sua única refeição - entre as três da manhã e as sete da noite - consta de uma ração de arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas primeiras horas do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia-fria, e os que não trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e envergonhados.

É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um "centro" e uma "periferia", o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos (luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico). Condição, aliás, encontrada no "centro", isto é, nos bolsões de pobreza, os cortiços e as favelas. População cuja jornada de trabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura de 14 a 15 horas, e, no caso das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado com os filhos.

É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições, justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos "conflitos de interesses" (à maneira das democracias liberais). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a qualquer preço. Por isso recusa perceber e trabalhar os conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem mítica da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Contradições e conflitos não são ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar.

Nela vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se observa no uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de "Doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior ("doutor" é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza);ou como se observa na importância dada à manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc.

A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos "miseráveis". A existência de crianças de rua é vista como "tendência natural dos pobres à criminalidade". Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas são tidas como degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.

A sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia.

4. Democracia: criação de direitos

De fato, uma sociedade é democrática quando institui algo profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos. Essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática realiza-se socialmente como luta social e, politicamente, como um contra-poder social que determina, dirige, controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências.

Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias).

Uma das práticas mais importantes da política democrática consiste justamente em propiciar ações capazes de unificar a dispersão e a particularidade das carências em interesses comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las alcançar a esfera universal dos direitos. Em outras palavras, privilégios e carências determinam a desigualdade econômica, social e política, contrariando o princípio democrático da igualdade, de sorte que a passagem das carências dispersas em interesse comuns e destes aos direitos é a luta pela igualdade. Avaliamos o alcance da cidadania popular quando tem força para desfazer privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a legitimidade diante dos direitos e também quando tem força para fazer carências passarem à condição de interesses comuns e, destes, a direitos universais.
É neste contexto que a práxis da ministra Matilde precisa ser percebida e compreendida. É inconcebível que seu papel na instituição da democracia no Brasil possa ser diminuído ou contestado seja lá por quem for e muito menos pelos agentes da violência institucionalizada neste país.