quinta-feira, 24 de julho de 2008

A EMERGÊNCIA E A CONSOLIDAÇÃO DA CIÊNCIA POLÍTICA

Sérgio Costa*

A ciência política como campo de estudo distinto da sociologia, com uma institucionalidade autônoma, paradigmas próprios e uma metodologia distintiva só surge efetivamente no Brasil nos finais dos anos 60 – momento em que a antropologia já havia se consolidado como área de conhecimento independente. Até então, a ciência política aparecia subsumida na orientação predominantemente macrossociológica das ciências sociais brasileiras. Além disso, a hegemonia teórica das correntes marxistas permitia um espaço reduzido para que a política emergisse como um campo de investigações autônomo [...]. Nesse sentido, talvez se pudesse relacionar, epistemologicamente, a ascensão de uma esfera de gravitação própria para a ciência política com as aludidas dúvidas que a existência de um regime militar modernizador trouxe para aquela macrossociologia dirigida para a transformação social.

A consolidação tardia da ciência política brasileira acompanha a tendência internacional, principalmente nos países europeus, onde a institucionalização de tal ramo do conhecimento só se completa nas décadas de 60 e 70. Mais localizadamente, a institucionalização das ciências políticas no Brasil se beneficia daquele conjunto de medidas de incentivo à pós-graduação desencadeado pelos governos militares, além dos incentivos das agências internacionais de fomento.

Os dois primeiros e até hoje os principais centros de pós-graduação em ciências políticas do país, o Departamento de Ciências Políticas da UFMG e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, ambos fortemente patrocinados pela Fundação Ford, surgem fora de São Paulo, e apresentam [...] uma predominância das escolas teóricas norte-americanas. Mesmo que os pesquisadores ligados ao momento fundacional das ciências políticas no Brasil não apresentassem um marco teórico-metodológico comum e único, mostram como característica peculiar o fato de serem críticos ao marxismo difundido no país àquela época e de enfatizarem fortemente a autonomia da esfera pública com relação aos demais campos da vida social. Buscam, também, [...] o rigor e aprimoramento metodológico, o apoio em técnicas quantitativas, além de apresentarem um texto direto e econômico contrastante com a narrativa quase romanesca da tradição sociológica precedente.

A consagração definitiva da recém-surgida ciência política dar-se-ia com os chamados estudos sobre a transição democrática. Trabalhando em colaboração com outros colegas latino-americanos, [...] os pesquisadores brasileiros – muitos deles radicados nos EUA – desenvolvem um amplo estudos das instituições políticas, procurando aferir o sentido e o teor precisos da ruptura autoritária, além de buscarem identificar os elementos fundamentais que caracterizam, mais tarde, o restabelecimento da democracia. Assentadas sobre o individualismo metodológico e na idéia de incerteza da teoria dos jogos, as teorias da transição definem a democracia como um sistema institucional de processamento de conflitos, caracterizado pela concorrência dos diferentes interesses sociais, sem que qualquer participante tenha segurança dos resultados finais a serem alcançados. Nesse escopo, a situação autoritária seria caracterizada pela suspensão do caráter contingente do jogo político, enquanto a democratização representa o processo através do qual a incerteza sobre os resultados novamente se estabelece e a força reguladora de um conjunto de regras se impõe sobre o poder de um grupo determinado.

É precisamente esse núcleo conceitual que direcionaria a minuciosa radiografia das instituições políticas perseguida pela ciência política brasileira. Se no momento da transição democrática coube precisar o momento institucional em que as regras de validade universal se impuseram sobre os interesses dos atores específicos e o caráter contingente e incerto dos resultados do jogo político novamente veio à tona, caberia agora seguir descrevendo a forma como operam as instituições políticas na “nova democracia” brasileira.

Trabalhando atualmente com uma pauta ampliada de temas, entre os quais se incluem, ao lado de seus objetos típicos [...] pode-se dizer que os pesquisadores consagrados na onda de estudos da transição e os marcos teórico-metodológicos utilizados no âmbito de tais estudos constituem ainda hoje o núcleo da ciência política brasileira. Uma preferência pelas abordagens da escolha racional, uma tendência mais recente à formalização e à modelização e a quase absoluta inexistência de um diálogo com a filosofia política são marcas características da ciência política que se produz hoje no Brasil. Só mesmo nas franjas do circuito acadêmico e numa posição claramente marginal e minoritária é que se desenvolve uma ciência política normativa receptiva às diferentes concepções de justiça em confronto no debate contemporâneo, como na controvérsia entre liberais e comunistaristas ou entre liberais e feministas.

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Sérgio Costa é doutor em Sociologia e professor na Universidade Livre de Berlim. O trecho acima citado foi extraído do livro “As Cores de Ercília: esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais”. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 104-106.