segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

MERCADO RENEGA A POLÍTICA, MAS MILITA

Maria Inês Nassif

Publicado originalmente no Valor, 27.12.2007

A política morreu. Viva a política. O ano de 2007, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo governo e do desgaste amargado pelos partidos políticos e pelo Legislativo, pode se orgulhar de ser aquele onde a política ousou desafiar o "consenso" contra o qual ela se debateu internacionalmente nas últimas duas décadas - o de que ela é ruim e deve negar a si própria para ter alguma virtude. Em nome da racionalidade, chegou-se a defender com enorme convicção (e esse "chegou-se" inclui muita gente) que as decisões de governo fossem cada vez mais descoladas da política e substituídas, sempre que possível, por automatismos técnicos a cargo de uma burocracia racional - esta sim, imunizada contra pressões e interesses de políticos eleitos por um povo ignorante e pouco informado, ele próprio mais interessado em suas necessidades imediatas do que no futuro do país.

Foi preciso uma grande crise política, a do mensalão, em 2005, para que o governo de um partido à esquerda do espectro político fugisse da timidez de contrariar o modelito da racionalidade imposto principalmente nos governos FHC. Não foi apenas timidez, aliás: no primeiro mandato, a opção de Lula foi mexer o menos possível num país que estava na corda bamba, frágil o suficiente para quebrar ao primeiro movimento especulativo. A promessa de "manter os contratos" feita pela Carta ao Povo Brasileiro, aprovada pelo PT antes das eleições de 2002, era um pacote que incluía manter a Lei de Responsabilidade Fiscal, a independência do Banco Central - senão de direito, ao menos de fato -, o câmbio flutuante (sem interferência sequer da autoridade monetária independente) e um vigoroso superávit fiscal. O primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, tomou a ferro e fogo e gostou da fórmula. Foi dando certo. E foi ficando.

A crise política lembrou ao governo e ao PT que nem a autonomia burocrática de parte da máquina governamental, destinada a manter pressupostos exigidos pelo mercado, é inocente. Ela é complementar à ideologia que nega a legitimidade das decisões de um governo eleito (e a negação foi orquestrada pelos próprios eleitos na última década). E, no limite, essa ideologia, é essencialmente antidemocrática.

No livro "Tudo à venda" (1996), o norte-americano Robert Kuttner, ao analisar a perturbadora adesão - inclusive de presidentes democratas dos EUA - ao pré-conceito de que quanto mais governo, pior, aglutina num único bloco de pensamento antidemocrático a teoria da Escolha Pública [Public Choice] e a da Escolha Racional [Rational Choice] (e trata ambas por Escolha Pública). Elas são uma transposição radical do liberalismo econômico para o mundo da política e são quase totalmente montadas em torno de silogismos que decorrem da crença incondicional de que o mercado tem o dom de corrigir suas próprias falhas - e por isso dificilmente falha. Ao historiar a construção dessas teorias, Kuttner acaba expondo o tamanho da armadilha política em que caíram os países e governos que assumiram acriticamente o neoliberalismo como verdade indiscutível, como "racionalidade".

A primeira premissa da Escolha Pública é a de que as mesmas razões que tornam o mercado virtuoso desqualificam a política. Se o homem maximiza o comportamento auto-interessado na economia, faz o mesmo na política. A escolha democrática é mais imperfeita do que o consumo: o mesmo cidadão que se informa e compra no mercado o melhor, tem informações imperfeitas para escolher os seus representantes - o eleitor médio é, em princípio, incapaz de separar o bom político do ruim. Nem eleitores, nem políticos, aliás, estariam interessados no bem comum, já que a lógica é que cada um defenda o seu próprio interesse. Se a concorrência, na economia, regula o mercado, é ela que corrompe a política.

Como os políticos são movidos por interesses próprios, o processo legislativo tem grandes possibilidades de não expressar o que de fato a maioria quer, assim como tem pouquíssimas chances de ter racionalidade, segundo a Escolha Pública. Assim, os tribunais não apenas têm legitimidade para desautorizar legisladores, como devem fazê-lo. Num regime democrático, convivem a conveniente liberdade do mercado e a inconveniente submissão do cidadão (e do mercado) a um governo das maiorias, que por esta ótica nada mais é do que a soma de interesses individuais inconfessáveis, difusos e pouco inteligentes.

A generalização feita acima pode parecer grosseira, mas ilustra o tanto que o país foi contaminado pelo preconceito com a política, que veio embutido no período de hegemonia absoluta do neoliberalismo econômico. Os dois governos de FHC nada mais foram do que a expressão máxima desse pensamento: a maioria governista foi amplamente utilizada para neutralizar o seu papel e o do governo na área econômica - o Legislativo era "menos pior" porque cumpria o papel de retirar a política da cena econômica. As chamadas reformas estruturais foram, na verdade, a desconstitucionalização do poder de regular do Estado. O primeiro mandato de Lula seguiu na mesma linha, embora sem maiorias. No último ano, a revelação foi a de que, independente do grau de adesão à máxima de que, quanto menos Estado, melhor, o mercado também tem as suas preferências políticas e partidárias. O mercado renega a política, mas milita na política durante todo o tempo.

O fim da lua-de-mel com os mercados e com as elites econômicas trouxe de volta a política à democracia brasileira - a política transparente, sem disfarces. Com todos os seus defeitos: os partidos são frágeis; as eleições são movidas a interesses privados, já que dependem de altos financiamentos que vêm de grupos com poder econômico; existem obstruções sérias de representação de setores sociais. Mas essa é a política que temos - e dela o país deve partir para construir uma sólida democracia, amadurecer seus partidos e desenvolver mecanismos que dêem eficiência à representação política.

A democracia, por mais imperfeita que seja, é mais sábia do que o mercado.

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